TROVADORISMO E MPB: uma análise das músicas de Chico Buarque e das poesias galego-portuguesas

trovadorismo foi um movimento literário medieval que se revelou como precursor de uma manifestação poética com aspectos distintos. Passada de geração em geração, até hoje há resquícios da influência do trovadorismo na música popular brasileira. 

Nas cantigas de amigo, a psiqué feminina é explorada e revelada pelos homens -apesar de ser cantada na voz feminina. Em comparação às cantigas de amor, as de amigo eram elaboradas de forma mais frugal e de mais fácil compreensão, pois se utilizava recursos menos sofisticados e rebuscados, entretanto, isso não as tornava menos relevantes e essenciais do ponto de vista poético. Observa-se que, na cantiga de Fernão e na canção de Chico, o eu-lírico se queixa do abandono que seu amigo (amante/namorado), causando uma intensa mistura de sentimentos: a saudade, o rancor, a vingança e o desejo (todos eles expressados de forma e intensa e clara). 

Cantiga de amigo galego  portuguesa     


Cantiga de amigo galego  portuguesa  de Fernão Fernandes Cogominho




Amig', e nom vos nembrades 
de mi e torto fazedes; 
mais nunca per mi creades 
se mui cedo nom veedes 
       casodes mal conselhado 
       de mi sair de mandado. 

Nom dades agora nada 
por mi e, pois vos partirdes 
daqui, mais mui bem vingada 
serei de vós quando virdes 
       ca sodes mal conselhado 
       de mi sair de mandado. 

Nom queredes viver migo 
e morro [eu] com soidade, 
mais ve[e]redes, amigo, 
pois que vos dig'en verdade: 
       ca sodes mal conselhado 
       de mi sair de mandado. 



Canção “Atrás da Porta” de Chico Buarque   

Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus 
Juro que não acreditei 
Eu te estranhei 
Me debrucei 

Sobre teu corpo e duvidei 
E me arrastei e te arranhei 
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos 
Teu pijama 
Nos teus pés 
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta 
Reclamei baixinho 

Dei pra maldizer o nosso lar 
Pra sujar teu nome, te humilhar 
E me vingar a qualquer preço 
Te adorando pelo avesso 
Pra mostrar que inda sou tua 
Só pra provar que inda sou tua
       






Já nas cantigas de amor, o eu-lírico é masculino (diferentemente das cantigas de amigo) e se refere à sua amada (geralmente chamada de “mia senhor” ou “senhora”) de maneira veementemente sofrida, visto que seu amor não era correspondido. Spina, em A lírica trovadoresca, comenta sobre algumas características fundamentais dessas cantigas, são elas: submissão absoluta à sua dama; uma vassalagem humilde e paciente; uma promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade; a mesura, prudência e moderação a fim de não abalar a reputação da dama (pretz), pois a inobservância deste preceito acarreta a sanha da mulher; a mulher excede a todas no mundo em formosura e por ela o trovador despreza todos os títulos, todas as riquezas e a posse de todos os impérios. Na cantiga e canção a seguir, é notório o amor não correspondido e a exaltação da sua amada. 

Cantiga de amor galego-portuguesa de Pero de Arme

A vós fez Deus, fremosa mia senhor, 
o maior bem que vos pôd'El fazer: 
fez-vos mansa e melhor parecer 
das outras donas e fez-vos melhor 
       dona do mund[o] e de melhor sem: 
       vedes, senhor, se al disser alguém, 
       com verdade nom vos pod'al dizer. 

Feze-vos Deus e deu-vo'lo maior 
poder de bem e fez-vos mais valer 
das outras donas e fez-vos vencer 
tôdalas donas e fez-vos melhor 
       dona do mund[o] e de melhor sem: 
       vedes, senhor, se al disser alguém, 
       com verdade nom vos pod'al dizer. 

E porque é Deus o mais sabedor 
do mundo, fez-me-vos tal bem querer 
qual vos eu quer'e fez a vós nacer 
mais fremosa e fez-vos [a] melhor 
       dona do mund[o] e de melhor sem: 
       vedes, senhor, se al disser alguém, 
       com verdade nom vos pod'al dizer. 

E o que al disser, por dizer mal 
de vós, senhor, do que disser nem d'al, 
cofonda Deus quem lho nunca creer! 

quer'end'eu todos desenganar: 
o que m'esto, senhor, nomoutorgar 
nom sabe nada de bem conhocer. 


Canção “Falando de Amor” de Chico Buarque 




Se eu pudesse por um dia 

Esse amor essa alegria 

Eu te juro te daria 
Se pudesse esse amor todo dia. 



Chega perto 


Vem sem medo 

Chega mais meu coração 
Vem ouvir esse segredo 
Escondido num choro-canção. 

Se soubesses 

Como eu gosto 

Do teu cheiro teu jeito de flor 
Não negavas um beijinho 
A quem anda perdido de amor. 


Chora flauta 

Chora pinho 

Chora eu o teu cantor 
Chora manso bem baixinho 
Nesse choro falando de amor. 


Vem depressa, vem sem medo 

Foi pra ti meu coração 

Que eu guardei esse segredo 
Escondido num choro-canção. 

Quando passas 

Tão bonita 

Nessa rua banhada de sol 
Minha alma segue aflita 
E eu me esqueço até do futebol.


Vem depressa, vem sem medo 

Foi pra ti meu coração 

Que eu guardei esse segredo 
Escondido num choro-canção 
Lá no fundo do meu coração



As cantigas de maldizer e de escárnio, por sua vez, se diferem totalmente das cantigas líricas de amor e de amigosão cantigas que procuram ridicularizar as pessoas, seja de forma indireta (escárnio) ou direta (maldizer).  

Nas cantigas de maldizer (espécie à que pertence a maioria das nossas poesias satíricas) atacava-se a descoberto, diretamente; nelas, diria eu vulgarmente, dava-se o nome aos bois, isto é, chamavam-se as pessoas e as coisas pelo seu nome. Nas cantigas d'escárnio, o ataque, velado sob formas ambíguas, magoava de leve, ao passo que nas de maldizer a ofensa direta, sem artifícios, vazada em termos baixos e dfcazes, feria brutalmente. Todavia, nem sempre é fácil fazer tal distinção, devido à freqüente concorrência do equívoco e da obscenidade numa mesma composição.” (ROBI A. As cantigas d’escárnio e maldizer, p. 5, 1980) 

A semelhança entre a cantiga de Afonso X e a canção de Chico Buarque é a sátira direta a uma pessoa, ridicularizando-a de forma risória, difamatória e com bastantes xingamentos. 


Cantiga de maldizer galego-portuguesa  de Afonso X 




Achei Sanch[a] Anes encavalgada
e dix'eu por ela cousa guisada:
ca nunca vi dona peior talhada,
e quige jurar que era mostea;
 e vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar com um seu 'scudeiro
e nom ia milhor um cavaleiro.
Santiaguei-m'e disse: - Gram foi o palheiro
onde carregarom tam gram mostea;
  vi-a cavalgar per ũa aldeia
  e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar indo pela rua,
mui bem vistida em cima da mua;
dix'eu: - Ai, velha fududancua,
que me semelhades ora mostea!
Vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.



Canção “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque 





De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada 


Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato 

E também vai amiúde Com os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir 

Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! 

Um dia surgiu, brilhante Entre as nuvens, flutuante Um enorme zepelim 

Pairou sobre os edifícios Abriu dois mil orifícios Com dois mil canhões assim 
A cidade apavorada Se quedou paralisada Pronta pra virar geleia Mas do zepelim gigante Desceu o seu comandante Dizendo: "Mudei de ideia!"

Quando vi nesta cidade Tanto horror e iniquidade Resolvi tudo explodir Mas posso evitar o drama Se aquela formosa dama Esta noite me servir 

Essa dama era Geni! Mas não pode ser Geni! Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni! 

Mas de fato, logo ela Tão coitada e tão singela Cativara o forasteiro O guerreiro tão vistoso Tão temido e poderoso 
Era dela, prisioneiro  

Acontece que a donzela (E isso era segredo dela) Também tinha seus caprichos E ao deitar com homem tão nobre Tão cheirando a brilho e a cobre Preferia amar com os bichos 

Ao ouvir tal heresia A cidade em romaria Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos O bispo de olhos vermelhos E o banqueiro com um milhão 

Vai com ele, vai, Geni! Vai com ele, vai, Geni! Você pode nos salvar Você vai nos redimir Você dá pra qualquer um Bendita Geni! 

Foram tantos os pedidos Tão sinceros, tão sentidos Que ela dominou seu asco Nessa noite lancinante Entregou-se a tal amante Como quem dá-se ao carrasco 

Ele fez tanta sujeira Lambuzou-se a noite inteira Até ficar saciado E nem bem amanhecia Partiu numa nuvem fria Com seu zepelim prateado 

Num suspiro aliviado Ela se virou de lado E tentou até sorrir Mas logo raiou o dia E a cidade em cantoria Não deixou ela dormir 

Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! 

Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! 

A canção “Cálice” de Chico Buarque faz uma crítica indireta ao período da ditadura militar no Brasil, onde expressa de forma veemente porém indireta, sua insatisfação em relação a esse período. O que aproxima a cantiga e a canção é a forma indireta de se criticar algo ou alguém, característica típica das cantigas de escárnio. 

Cantiga de escárnio galego-portuguesa de Fernando Esquio 






A um frade dizem escaralhado, 


e faz pecado quem lho vai dizer, 


ca, pois el sabe arreitar de foder, 


cuid'euque gai é, de piss'arreitado; 
5 

e pois emprenha estas com que jaz 


e faze filhos e filhas assaz, 


ante lhe dig'eu bem encaralhado. 





Escaralhado nunca eu diria, 


mais que traje ante caralho ou veite, 
10 

ao que tantas molheres de leite 


tem, ca lhe parirom três em um dia, 


e outras muitas prenhadas que tem; 


atal frade cuid'eu que mui bem 


encaralhado per esto seria. 



15 

Escaralhado nom pode seer 


o que tantas filhas fez em Marinha 


e que tem ora outra pastorinha 


prenhe, que ora quer encaecer, 


e outras muitas molheres que fode; 
20 

atal frade bem cuid'eu que pode 


encaralhado per esto seer. 

Canção “Cálice” de Chico Buarque 


Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

De vinho tinto de sangue 
Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

De vinho tinto de sangue 
Como beber dessa bebida amarga 

Tragar a dor, engolir a labuta 

Mesmo calada a boca, resta o peito 

Silêncio na cidade não se escuta 

De que me vale ser filho da santa 

Melhor seria ser filho da outra 
Outra realidade menos morta 

Tanta mentira, tanta força bruta 
Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

De vinho tinto de sangue 
Como é difícil acordar calado 

Se na calada da noite eu me dano 

Quero lançar um grito desumano 

Que é uma maneira de ser escutado 

Esse silêncio todo me atordoa 

Atordoado eu permaneço atento 

Na arquibancada pra a qualquer momento 

Ver emergir o monstro da lagoa 
Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

De vinho tinto de sangue 
De muito gorda a porca já não anda 

De muito usada a faca já não corta 

Como é difícil, pai, abrir a porta 

Essa palavra presa na garganta 

Esse pileque homérico no mundo 

De que adianta ter boa vontade 

Mesmo calado o peito, resta a cuca 

Dos bêbados do centro da cidade 
Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

Pai, afasta de mim esse cálice 

De vinho tinto de sangue 
Talvez o mundo não seja pequeno 

Nem seja a vida um fato consumado 

Quero inventar o meu próprio pecado 

Quero morrer do meu próprio veneno 

Quero perder de vez tua cabeça 

Minha cabeça perder teu juízo 

Quero cheirar fumaça de óleo diesel 








BIBLIOGRAFIA: 
CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galego-portugueses. Lisboa: Estampa, 1976 





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