TROVADORISMO E MPB: uma análise das músicas de Chico Buarque e das poesias galego-portuguesas
O trovadorismo foi um movimento literário medieval que se revelou como precursor de uma manifestação poética com aspectos distintos. Passada de geração em geração, até hoje há resquícios da influência do trovadorismo na música popular brasileira.
Nas cantigas de amigo, a psiqué feminina é explorada e revelada pelos homens -apesar de ser cantada na voz feminina. Em comparação às cantigas de amor, as de amigo eram elaboradas de forma mais frugal e de mais fácil compreensão, pois se utilizava recursos menos sofisticados e rebuscados, entretanto, isso não as tornava menos relevantes e essenciais do ponto de vista poético. Observa-se que, na cantiga de Fernão e na canção de Chico, o eu-lírico se queixa do abandono que seu amigo (amante/namorado), causando uma intensa mistura de sentimentos: a saudade, o rancor, a vingança e o desejo (todos eles expressados de forma e intensa e clara).
Cantiga de amigo galego – portuguesa
Cantiga de amigo galego – portuguesa de Fernão Fernandes Cogominho
Amig', e nom vos nembrades
de mi e torto fazedes;
mais nunca per mi creades
se mui cedo nom veedes
ca sodes mal conselhado
de mi sair de mandado.
Nom dades agora nada
por mi e, pois vos partirdes
daqui, mais mui bem vingada
serei de vós quando virdes
ca sodes mal conselhado
de mi sair de mandado.
Nom queredes viver migo
e morro [eu] com soidade,
mais ve[e]redes, amigo,
pois que vos dig'en verdade:
ca sodes mal conselhado
de mi sair de mandado.
Canção “Atrás da Porta” de Chico Buarque
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua
Já nas cantigas de amor, o eu-lírico é masculino (diferentemente das cantigas de amigo) e se refere à sua amada (geralmente chamada de “mia senhor” ou “senhora”) de maneira veementemente sofrida, visto que seu amor não era correspondido. Spina, em A lírica trovadoresca, comenta sobre algumas características fundamentais dessas cantigas, são elas: submissão absoluta à sua dama; uma vassalagem humilde e paciente; uma promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade; a mesura, prudência e moderação a fim de não abalar a reputação da dama (pretz), pois a inobservância deste preceito acarreta a sanha da mulher; a mulher excede a todas no mundo em formosura e por ela o trovador despreza todos os títulos, todas as riquezas e a posse de todos os impérios. Na cantiga e canção a seguir, é notório o amor não correspondido e a exaltação da sua amada.
Cantiga de amor galego-portuguesa de Pero de Arme
A vós fez Deus, fremosa mia senhor,
o maior bem que vos pôd'El fazer:
fez-vos mansa e melhor parecer
das outras donas e fez-vos melhor
dona do mund[o] e de melhor sem:
vedes, senhor, se al disser alguém,
com verdade nom vos pod'al dizer.
Feze-vos Deus e deu-vo'lo maior
poder de bem e fez-vos mais valer
das outras donas e fez-vos vencer
tôdalas donas e fez-vos melhor
dona do mund[o] e de melhor sem:
vedes, senhor, se al disser alguém,
com verdade nom vos pod'al dizer.
E porque é Deus o mais sabedor
do mundo, fez-me-vos tal bem querer
qual vos eu quer'e fez a vós nacer
mais fremosa e fez-vos [a] melhor
dona do mund[o] e de melhor sem:
vedes, senhor, se al disser alguém,
com verdade nom vos pod'al dizer.
E o que al disser, por dizer mal
de vós, senhor, do que disser nem d'al,
cofonda Deus quem lho nunca creer!
E quer'end'eu todos desenganar:
o que m'esto, senhor, nom outorgar
nom sabe nada de bem conhocer.
Canção “Falando de Amor” de Chico Buarque
Se eu pudesse por um dia
Esse amor essa alegria
Eu te juro te daria
Se pudesse esse amor todo dia.
Chega perto
Vem sem medo
Chega mais meu coração
Vem ouvir esse segredo
Escondido num choro-canção.
Se soubesses
Como eu gosto
Do teu cheiro teu jeito de flor
Não negavas um beijinho
A quem anda perdido de amor.
Chora flauta
Chora pinho
Chora eu o teu cantor
Chora manso bem baixinho
Nesse choro falando de amor.
Vem depressa, vem sem medo
Foi pra ti meu coração
Que eu guardei esse segredo
Escondido num choro-canção.
Quando passas
Tão bonita
Nessa rua banhada de sol
Minha alma segue aflita
E eu me esqueço até do futebol.
Vem depressa, vem sem medo
Foi pra ti meu coração
Que eu guardei esse segredo
Escondido num choro-canção
Lá no fundo do meu coração
As cantigas de maldizer e de escárnio, por sua vez, se diferem totalmente das cantigas líricas de amor e de amigo: são cantigas que procuram ridicularizar as pessoas, seja de forma indireta (escárnio) ou direta (maldizer).
“Nas cantigas de maldizer (espécie à que pertence a maioria das nossas poesias satíricas) atacava-se a descoberto, diretamente; nelas, diria eu vulgarmente, dava-se o nome aos bois, isto é, chamavam-se as pessoas e as coisas pelo seu nome. Nas cantigas d'escárnio, o ataque, velado sob formas ambíguas, magoava de leve, ao passo que nas de maldizer a ofensa direta, sem artifícios, vazada em termos baixos e dfcazes, feria brutalmente. Todavia, nem sempre é fácil fazer tal distinção, devido à freqüente concorrência do equívoco e da obscenidade numa mesma composição.” (ROBI A. As cantigas d’escárnio e maldizer, p. 5, 1980)
A semelhança entre a cantiga de Afonso X e a canção de Chico Buarque é a sátira direta a uma pessoa, ridicularizando-a de forma risória, difamatória e com bastantes xingamentos.
Cantiga de maldizer galego-portuguesa de Afonso X
Achei Sanch[a] Anes encavalgada
e dix'eu por ela cousa guisada:
ca nunca vi dona peior talhada,
e quige jurar que era mostea;
e vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.
Vi-a cavalgar com um seu 'scudeiro
e nom ia milhor um cavaleiro.
Santiaguei-m'e disse: - Gram foi o palheiro
onde carregarom tam gram mostea;
vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.
Vi-a cavalgar indo pela rua,
mui bem vistida em cima da mua;
dix'eu: - Ai, velha fududancua,
que me semelhades ora mostea!
Vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.
Canção “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque
De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato
E também vai amiúde Com os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!
Um dia surgiu, brilhante Entre as nuvens, flutuante Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios Abriu dois mil orifícios Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada Se quedou paralisada Pronta pra virar geleia Mas do zepelim gigante Desceu o seu comandante Dizendo: "Mudei de ideia!"
Quando vi nesta cidade Tanto horror e iniquidade Resolvi tudo explodir Mas posso evitar o drama Se aquela formosa dama Esta noite me servir
Essa dama era Geni! Mas não pode ser Geni! Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni!
Mas de fato, logo ela Tão coitada e tão singela Cativara o forasteiro O guerreiro tão vistoso Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela (E isso era segredo dela) Também tinha seus caprichos E ao deitar com homem tão nobre Tão cheirando a brilho e a cobre Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia A cidade em romaria Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos O bispo de olhos vermelhos E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai, Geni! Vai com ele, vai, Geni! Você pode nos salvar Você vai nos redimir Você dá pra qualquer um Bendita Geni!
Foram tantos os pedidos Tão sinceros, tão sentidos Que ela dominou seu asco Nessa noite lancinante Entregou-se a tal amante Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira Lambuzou-se a noite inteira Até ficar saciado E nem bem amanhecia Partiu numa nuvem fria Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado Ela se virou de lado E tentou até sorrir Mas logo raiou o dia E a cidade em cantoria Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!
Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!
A canção “Cálice” de Chico Buarque faz uma crítica indireta ao período da ditadura militar no Brasil, onde expressa de forma veemente porém indireta, sua insatisfação em relação a esse período. O que aproxima a cantiga e a canção é a forma indireta de se criticar algo ou alguém, característica típica das cantigas de escárnio.
Cantiga de escárnio galego-portuguesa de Fernando Esquio
A um frade dizem escaralhado,
e faz pecado quem lho vai dizer,
ca, pois el sabe arreitar de foder,
cuid'eu que gai é, de piss'arreitado;
5
e pois emprenha estas com que jaz
e faze filhos e filhas assaz,
ante lhe dig'eu bem encaralhado.
Escaralhado nunca eu diria,
mais que traje ante caralho ou veite,
10
ao que tantas molheres de leite
tem, ca lhe parirom três em um dia,
e outras muitas prenhadas que tem;
e atal frade cuid'eu que mui bem
encaralhado per esto seria.
15
Escaralhado nom pode seer
o que tantas filhas fez em Marinha
e que tem ora outra pastorinha
prenhe, que ora quer encaecer,
e outras muitas molheres que fode;
20
e atal frade bem cuid'eu que pode
encaralhado per esto seer.
Canção “Cálice” de Chico Buarque
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
BIBLIOGRAFIA:
CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galego-portugueses. Lisboa: Estampa, 1976
O trovadorismo foi um movimento literário medieval que se revelou como precursor de uma manifestação poética com aspectos distintos. Passada de geração em geração, até hoje há resquícios da influência do trovadorismo na música popular brasileira.
Nas cantigas de amigo, a psiqué feminina é explorada e revelada pelos homens -apesar de ser cantada na voz feminina. Em comparação às cantigas de amor, as de amigo eram elaboradas de forma mais frugal e de mais fácil compreensão, pois se utilizava recursos menos sofisticados e rebuscados, entretanto, isso não as tornava menos relevantes e essenciais do ponto de vista poético. Observa-se que, na cantiga de Fernão e na canção de Chico, o eu-lírico se queixa do abandono que seu amigo (amante/namorado), causando uma intensa mistura de sentimentos: a saudade, o rancor, a vingança e o desejo (todos eles expressados de forma e intensa e clara).
Cantiga de amigo galego – portuguesa
Canção “Atrás da Porta” de Chico Buarque
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Cantiga de amigo galego – portuguesa de Fernão Fernandes Cogominho
Amig', e nom vos nembrades
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de mi e torto fazedes;
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mais nunca per mi creades
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se mui cedo nom veedes
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ca sodes mal conselhado
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de mi sair de mandado.
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Nom dades agora nada
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por mi e, pois vos partirdes
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daqui, mais mui bem vingada
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serei de vós quando virdes
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ca sodes mal conselhado
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de mi sair de mandado.
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Nom queredes viver migo
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e morro [eu] com soidade,
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mais ve[e]redes, amigo,
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pois que vos dig'en verdade:
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ca sodes mal conselhado
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de mi sair de mandado.
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Canção “Atrás da Porta” de Chico Buarque
Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua
Já nas cantigas de amor, o eu-lírico é masculino (diferentemente das cantigas de amigo) e se refere à sua amada (geralmente chamada de “mia senhor” ou “senhora”) de maneira veementemente sofrida, visto que seu amor não era correspondido. Spina, em A lírica trovadoresca, comenta sobre algumas características fundamentais dessas cantigas, são elas: submissão absoluta à sua dama; uma vassalagem humilde e paciente; uma promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade; a mesura, prudência e moderação a fim de não abalar a reputação da dama (pretz), pois a inobservância deste preceito acarreta a sanha da mulher; a mulher excede a todas no mundo em formosura e por ela o trovador despreza todos os títulos, todas as riquezas e a posse de todos os impérios. Na cantiga e canção a seguir, é notório o amor não correspondido e a exaltação da sua amada.
Cantiga de amor galego-portuguesa de Pero de Arme
A vós fez Deus, fremosa mia senhor,
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o maior bem que vos pôd'El fazer:
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fez-vos mansa e melhor parecer
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das outras donas e fez-vos melhor
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dona do mund[o] e de melhor sem:
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vedes, senhor, se al disser alguém,
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com verdade nom vos pod'al dizer.
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Feze-vos Deus e deu-vo'lo maior
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poder de bem e fez-vos mais valer
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das outras donas e fez-vos vencer
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tôdalas donas e fez-vos melhor
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dona do mund[o] e de melhor sem:
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vedes, senhor, se al disser alguém,
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com verdade nom vos pod'al dizer.
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E porque é Deus o mais sabedor
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do mundo, fez-me-vos tal bem querer
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qual vos eu quer'e fez a vós nacer
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mais fremosa e fez-vos [a] melhor
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dona do mund[o] e de melhor sem:
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vedes, senhor, se al disser alguém,
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com verdade nom vos pod'al dizer.
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E o que al disser, por dizer mal
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de vós, senhor, do que disser nem d'al,
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cofonda Deus quem lho nunca creer!
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E quer'end'eu todos desenganar:
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o que m'esto, senhor, nom outorgar
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nom sabe nada de bem conhocer.
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Canção “Falando de Amor” de Chico Buarque
Se eu pudesse por um dia
Esse amor essa alegria
Eu te juro te daria
Se pudesse esse amor todo dia.
Chega perto
Vem sem medo
Chega mais meu coração
Vem ouvir esse segredo
Escondido num choro-canção.
Se soubesses
Como eu gosto
Do teu cheiro teu jeito de flor
Não negavas um beijinho
A quem anda perdido de amor.
Chora flauta
Chora pinho
Chora eu o teu cantor
Chora manso bem baixinho
Nesse choro falando de amor.
Vem depressa, vem sem medo
Foi pra ti meu coração
Que eu guardei esse segredo
Escondido num choro-canção.
Quando passas
Tão bonita
Nessa rua banhada de sol
Minha alma segue aflita
E eu me esqueço até do futebol.
Vem depressa, vem sem medo
Foi pra ti meu coração
Que eu guardei esse segredo
Escondido num choro-canção
Lá no fundo do meu coração
As cantigas de maldizer e de escárnio, por sua vez, se diferem totalmente das cantigas líricas de amor e de amigo: são cantigas que procuram ridicularizar as pessoas, seja de forma indireta (escárnio) ou direta (maldizer).
“Nas cantigas de maldizer (espécie à que pertence a maioria das nossas poesias satíricas) atacava-se a descoberto, diretamente; nelas, diria eu vulgarmente, dava-se o nome aos bois, isto é, chamavam-se as pessoas e as coisas pelo seu nome. Nas cantigas d'escárnio, o ataque, velado sob formas ambíguas, magoava de leve, ao passo que nas de maldizer a ofensa direta, sem artifícios, vazada em termos baixos e dfcazes, feria brutalmente. Todavia, nem sempre é fácil fazer tal distinção, devido à freqüente concorrência do equívoco e da obscenidade numa mesma composição.” (ROBI A. As cantigas d’escárnio e maldizer, p. 5, 1980)
A semelhança entre a cantiga de Afonso X e a canção de Chico Buarque é a sátira direta a uma pessoa, ridicularizando-a de forma risória, difamatória e com bastantes xingamentos.
Cantiga de maldizer galego-portuguesa de Afonso X
Achei Sanch[a] Anes encavalgada e dix'eu por ela cousa guisada: ca nunca vi dona peior talhada, e quige jurar que era mostea; e vi-a cavalgar per ũa aldeia e quige jurar que era mostea. Vi-a cavalgar com um seu 'scudeiro e nom ia milhor um cavaleiro. Santiaguei-m'e disse: - Gram foi o palheiro onde carregarom tam gram mostea; vi-a cavalgar per ũa aldeia e quige jurar que era mostea. Vi-a cavalgar indo pela rua, mui bem vistida em cima da mua; dix'eu: - Ai, velha fududancua, que me semelhades ora mostea! Vi-a cavalgar per ũa aldeia e quige jurar que era mostea. | |
Canção “Geni e o Zepelim” de Chico Buarque
De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato
E também vai amiúde Com os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!
Um dia surgiu, brilhante Entre as nuvens, flutuante Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios Abriu dois mil orifícios Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada Se quedou paralisada Pronta pra virar geleia Mas do zepelim gigante Desceu o seu comandante Dizendo: "Mudei de ideia!"
Quando vi nesta cidade Tanto horror e iniquidade Resolvi tudo explodir Mas posso evitar o drama Se aquela formosa dama Esta noite me servir
Essa dama era Geni! Mas não pode ser Geni! Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni!
Mas de fato, logo ela Tão coitada e tão singela Cativara o forasteiro O guerreiro tão vistoso Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela (E isso era segredo dela) Também tinha seus caprichos E ao deitar com homem tão nobre Tão cheirando a brilho e a cobre Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia A cidade em romaria Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos O bispo de olhos vermelhos E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai, Geni! Vai com ele, vai, Geni! Você pode nos salvar Você vai nos redimir Você dá pra qualquer um Bendita Geni!
Foram tantos os pedidos Tão sinceros, tão sentidos Que ela dominou seu asco Nessa noite lancinante Entregou-se a tal amante Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira Lambuzou-se a noite inteira Até ficar saciado E nem bem amanhecia Partiu numa nuvem fria Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado Ela se virou de lado E tentou até sorrir Mas logo raiou o dia E a cidade em cantoria Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!
Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!
Cantiga de escárnio galego-portuguesa de Fernando Esquio
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Canção “Cálice” de Chico Buarque
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
BIBLIOGRAFIA:
CORREIA, Natália. Cantares dos trovadores galego-portugueses. Lisboa: Estampa, 1976
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